O mundo que está sendo imposto pelo novo Coronavírus pode se tornar diferente e melhor depois da desgraça -é o que muitos dizem-, mas agora ele é triste, disforme e transforma todas as pessoas em seres amorfos, quase robóticos e sem identidades, cheios de medo. A alegria e um novo estilo de vida ainda estão no porvir, integrantes dos desejos e esperanças que alimentamos como um contrabalanço dos sofrimentos e privações que ora vivenciamos.

Sinto profunda amargura em ver centenas de milhares de pessoas com meio rosto, de olhar desconfiado, desviando de semelhantes, enquanto tiram medidas mentais, caminhando ao seu destino. Na cabeça da maioria, o temor da doença, da fome e do futuro, ainda que com a certeza de que a emergência pandêmica não poupa ninguém, o que quase iguala anseios e espera.

O escritor israelense Yuval Noah Harari, autor dos livros ‘Sapiens’, ‘Homo Deus’ e ‘21 Lessons for the 21st Century’, publicou artigo recente no Financial Times, intitulado ‘The world after coronavirus’ em que analisa alguns pontos interessantes, entre eles as mudanças que “provavelmente moldarão o mundo dos próximos anos”, “a solidariedade global” no lugar do isolamento nacionalista e “um novo e aterrorizante sistema de vigilância” que se implanta no mundo perseguindo o contágio.

É natural que decorram tantas transformações. Estamos vivendo uma crise de proporções gigantescas, que desafia até as mais desenvolvidas e ricas nações. Decisões, tecnologias e experimentos, que normalmente exigiriam meses e até anos de percurso são acionadas no imediatismo, com a justificativa de que o pior é não fazer nada. Acertadas ou erradas deixam no caminho marcas que vão impor mudanças por muito tempo. Podemos tirar como exemplo o ensino (online) a distância, por tanto tempo em experimento no mundo, e, claro, no Brasil. A premência da continuidade do ensino para milhões de crianças e de jovens empurrou o modelo.

Todo mundo diz que a crise vai passar, também acredito, porque a nuvem negra em algum momento se dissipa deixando aparecer sempre um novo dia. Da mesma forma que o tornado deixa marcas com que as pessoas terão de conviver por anos, as decisões e escolhas feitas durante a crise vão mudar nossas vidas nos próximos anos. Os sobreviventes vamos habitar um mundo diferente. Um novo mundo que vai incluir transformações no espaço de convivência das pessoas e das cidades, no relacionamento entre pessoas e nações, na saúde, higiene, na desigualdade, e, mais ainda, na vigilância, o que assusta, porque já estão em curso tecnologias cada vez mais sofisticadas para rastrear, monitorar e manipular pessoas. Em algumas metrópoles, aqui mesmo no Brasil, pessoas e entidades questionaram o uso de censores celulares (smartphones) oferecidos por operadoras para monitorar o alcance do isolamento social no combate a propagação da Covid-19. Outros países, de situações políticas de força, como a China, Israel e Vietnã, exercitaram sem parcimônia o controle, no melhor modelo “big brother”, associando a cooperação e a honesta coleta de informações, logrando um êxito maior no combate à pandemia.

O que dói é percebermos que o discurso dos plantonistas do poder parece se resumir na escolha entre isolamento e saúde. Será que não poderíamos desfrutar de um e de outro? Podemos sim ter privacidade e saúde, mas, em nossa vivência isso se torna quase impossível em decorrência da inconfiabilidade do poder público. Anos de má política, de mentiras, de roubalheiras, de traições levaram a um estágio de quase desobediência. Para chegar a um nível de conformidade e cooperação, as pessoas precisam confiar na ciência, nas autoridades públicas e também na mídia, como diz o escritor Yuval Noah Harari. “Podemos optar por proteger nossa saúde e impedir a epidemia de coronavírus, não instituindo regimes totalitários de vigilância, mas capacitando os cidadãos”. Trazemos como exemplos atuações bem sucedidas na Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura. Embora esses países tenham feito uso de aplicativos de rastreamento, eles confiaram muito mais em testes extensivos, em relatórios honestos e na cooperação voluntária de um público bem informado.

O futuro que vamos herdar vai nos colocar frente a desafios instigantes, e definitivos, de convivência, cooperação e vigilância. Mas a crise, como aprendemos de longe, é também uma oportunidade para chegar ao caminho libertador da solidariedade.

* Erivelto de Sousa é jornalista e escritor