O Ceará da seca do XV começa a ser redesenhado. A Funceme, que faz como no jogo de bola de gude: arremessa contra o grupo, mas tem que dizer - um de tudo.

Isso foi em 2014, quando a previsão de chuvas era de 40% menor que a média histórica (mais ou menos 800mm), 30% igual e 30 maior. Este ano, a Funceme prevê 64% de chance de ter mais um ano de seca (abaixo da média). Na incidência maior a chance é de apenas 9%, contra 27% dentro da média.

Pena que Raquel de Queiroz só seja imortal nos livros. Valeria escrever uma nova saga sobre a seca do XV. No romance O Quinze (1930), a escritora cearense Raquel de Queiroz traça um paralelo da dor e sofrimento enfrentados por uma família que foge da seca de 1915, da qual ela própria fora uma personagem real.


HISTÓRIA SEMPRE REPETIDA


A nova seca do (MM)XV não terá a mesma moldura, porque não é mais só o Nordeste a ser castigado de forma cruel pela seca. O Sudeste, São Paulo principalmente, engrossou o cordão dos sem-chuvas.

Mas o enredo é o mesmo, idem para a falta de providências. O cenário e as consequências, ainda que possam decorrer situações desesperadoras, só não serão tão graves porque o mundo contemporâneo criou estruturas que podem amenizar as dimensões da tragédia.



LIÇÃO NUNCA APRENDIDA


Das grandes secas que atingiram o Ceará (e o NE, é claro), uma das mais graves e lembradas foi a dos anos de 1877 à 1879, camada de A GRANDE SECA. Foram quase três anos seguidos sem chuvas, com perda de plantações, mortes de rebanhos e miséria extrema. A migração se tornou intensa.

Fortaleza, por exemplo, viu o cenário ficar caótico com a chegada de levas de retirantes - de outras cidades e estados. O temor da ocorrência de saques era permanente. A cidade converteu-se na capital do desespero. De 21 mil habitantes, pelo censo de 1872, passaram a ter 130 mil.

Era uma tragédia completa. Os rebanhos de animais sobreviventes sucumbiram diante da ação de zoonoses, furtos, fome e sede. A flora e a fauna da região praticamente desapareceram. Para fechar o quadro de tragédia, um surto de varíola matou milhares de pessoas.

Calcula-se que cerca de 500 mil pessoas morreram por causa da seca. O Estado mais atingido foi Ceará. O imperador dom Pedro II foi ao Nordeste e prometeu vender “até a última joia da Coroa” para amenizar o sofrimento dos súditos da região. Não vendeu, porém enviou engenheiros para a construção de poços, de estradas de ferro e armazenamentos de água, para assim resolver o grande problema da seca, mesma providência que o governo do PT & aliados vai tomar mais de 100 anos depois.

Em 1915, uma nova seca de graves consequências. Mais uma vez, a seca fez com que diversos nordestinos migrassem para as grandes cidades. Daquela vez a seca pegou o governo preparado - infelizmente, não para combater os efeitos dela, mas, ao contrário, para castigar mais ainda os flagelados.

Para proteger as "melhores" famílias de Fortaleza, o governo cearense resolveu, de maneira desumana, criar os primeiros currais humanos, campos de concentração em regiões separadas por arames farpados e vigiadas 24 horas por dia por soldados para confinar os nordestinas retirantes da seca.

O campo de concentração ficava a Oeste de Fortaleza, na região alagadiça da atual Otávio Bonfim. Ali ficaram confinadas cerca de 8 mil pessoas com alimentação e água controladas e vigiadas pelos soldados do Exército. Ainda em 1915, após incentivos para que os retirantes migrassem para a Amazônia, o curral humano foi desativado.

Cerca de 17 anos mais tarde, na seca de 1932, outra vez - e de forma mais intensa - o retirante nordestino voltou a ser massacrado nos desumanos campos de concentração. Foram sete: Ipu, Quixeramobim, Cariús, Buriti, Crato, Fortaleza (Otávio Bonfim e Pirambu) e Senador Pompeu.



Vale (re)ler trechos do poema “Campos de Concentração no Ceará”, de Henrique César Pinheiro.

No Estado do Ceará
A exemplo do alemão
Houve por aqui também
Campo de concentração
Lá era pra matar judeu
Aqui o povo do sertão.

Na seca de trinta e dois
Criamos uns sete currais
Para evitar que famintos
Criassem problemas sociais
E pudessem invadir
Na capital seus mananciais.

Currais foram construídos
Em Senador Pompeu, Ipu,
Quixeramobim e Crato,
Fortaleza e Cariús.
Fortaleza teve dois
Otávio Bonfim, Pirambu.

Pessoas foram confinadas
Como bando de animais.
Tinha a cabeça raspada
Sacos de açúcar, jornais
Era o que lhes serviam
Como vestes mais usuais

Sem nome, ou identidade,
Chamados por numerais.
Desta maneira estavam
Registrados nos anais.
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